Extracção

Autor: Nuno Bastos

Este texto foi publicado no livro Estranhos do Homem, do autor e na revista Abismo Humano (nº 7, página 16).


Há uma cadeira onde estou sentado ou uma cama onde estou deitado. Não sei que objecto é este porque não me disseram quando para aqui fui trazido. Às vezes saio daqui, vêm buscar-me para me levarem para o jardim. Sei que é para o jardim porque é isso que me dizem. Costumam acompanhar-me até lá, mas às vezes vou sozinho. Abrem a porta e dizem-me para ir. Ou vou sempre sozinho porque aquele que me acompanha também sou eu. Devo quase de certeza ir sempre sozinho. O do outro lado vai sempre acompanhado. Tenho a certeza que vai sempre acompanhado porque os vejo lado a lado. Quando chegam ao jardim, o que o acompanha ajuda-o a sentar e depois ficam a conversar. Às vezes o do outro lado grita bastante e quando grita o que o acompanha faz-lhe qualquer coisa e ele cala-se. Depois levantam-se e passeiam pelo jardim. Nunca contei quantas vezes vão passear antes da hora de almoço, já me disseram que vão uma mas nunca contei. Eles vão para ali, de onde veio o que trazia a espada. Ele tinha óculos e uma espada na mão. Não, não tinha óculos, só a espada. Refaço a frase: o que veio dali não tinha óculos mas tinha uma espada na mão. Ele vinha a andar, colocava um pé diante do outro e é por isso que sei que vinha a andar. A espada era pontiaguda e afiada e ele dizia pelo caminho que a espada estava bem afiada e é por isso que o sei. Eu vi-o pela janela do meu quarto. O do outro lado não viu o homem da espada porque não estava no jardim. A janela está a três passos da cama ou da cadeira. Já os contei, foi a segunda coisa que fiz quando aqui cheguei. Disseram-me “Agora ficas aqui e a partir de hoje este é o teu quarto”. Contei três passos para lá e outros tantos para cá. Também medi quantos palmos são para lá e para cá mas já não me lembro. Creio que será melhor, um dia, apontar estas informações para não me esquecer. Também me disseram que posso ver o jardim pela janela e indicaram-me a janela. Depois levantei-me e desci as escadas para saber a data. Ali fora há escadas. Para as descer coloco um pé diante do outro e sempre num nível abaixo. Foram dois homens que me trouxeram para aqui quando descobriram que eu tinha saído do quarto sem autorização, os mesmos que me disseram “Agora ficas aqui e a partir de hoje este é o teu quarto”. Deixaram-me e fecharam a porta. Disseram também que há a hora de almoço e explicaram-me que é lá que nos dão comida.

Não me parece haver nenhuma razão plausível para estar sentado. Será melhor levantar-me agora. Creio que a partir deste momento os meus gestos e os meus movimentos são inaptos. Concluo que ficarei imóvel, de pé e tão quieto quanto possível. Deixarei os braços caídos ao longo do corpo e pestanejarei quando apenas for estritamente necessário pois pretendo manter os olhos abertos e assim ficarão até ao limite das forças de cada pálpebra. Essa será a altura em que pestanejarei mas fá-lo-ei tão rápido quanto possível de modo a minimizar o tempo dedicado ao movimento. Quanto aos outros movimentos, como a circulação de sangue e de ar, terei de descobrir a maneira de os cancelar, mas deixarei esse assunto para outra ocasião. Para já limitar-me-ei a permanecer de pé e imóvel. Nesta posição não poderei ver o jardim porque não fiquei virado para a janela. Também não poderei ir para a hora de almoço. Abrirão a porta mas ela ficará escancarada até alguém a encerrar. Eu não sairei e, por isso, não poderei entrar, mas mesmo assim fecharão a porta depois de eu não ter regressado para aqui.

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Sinto pressão nas pálpebras. Querem fechar-se mas não as deixo. Ainda não. Daqui a pouco. Para já deixarei os olhos abertos.

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Não sei quantos meses se passaram desde que estou assim, talvez nenhum. Os meus braços continuam caídos ao longo do corpo. Os olhos deixaram de se conseguir fechar. Agora estão sempre abertos porque as pálpebras já não se fecham.

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Às vezes vejo a mão e um pouco do braço do que abre a porta.

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Dia seguinte: inexistente.

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Dia depois do dia inexistente: abriram a porta e um deles disse “Olha, este ainda está de pé!”. Passado um bocado fecharam a porta.

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Deixei de sentir o meu corpo por estar de pé há tanto tempo. Não sinto os braços portanto não sei se estão em movimento ou se estão parados. Terei de aprender a interromper o crescimento do cabelo e da barba.

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A minha estrutura óssea deve ter perdido a capacidade de se movimentar. O esqueleto passou a estar ajustado à posição de pé. Para me movimentar terão de me dar um encontrão de modo a que o meu corpo oscile um pouco. Caso seja necessário, será assim que me transportarão.

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Passei grande parte do dia de ontem. Disseram-me que era o dia de ontem. Foi um homem que entrou e pôs-se à minha frente. Baixou e levantou o maxilar enquanto disse. Vi-lhe a boca, a língua e a saliva. Depois foi-se embora a saliva, a língua, o maxilar e o homem, por esta ordem. Também havia suor mas esse ficou. O homem regressou pouco depois porque se deve ter esquecido do suor mas saiu sem o levar porque não o deve ter encontrado.

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Dia em que ele veio: não sei o nome dele. É um homem grande, anafado e balofo. Ele disse que queria curar o meu problema. Não lhe pude dizer nada porque perdi a capacidade de falar. 

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Consegui finalmente parar a circulação de sangue e de ar dentro de mim. Neste momento deixei de precisar do sistema circulatório e do sistema respiratório. Já tinha feito suspender tudo o resto, só me faltavam esses dois. Deste momento em diante, o meu corpo começará a secar e a desidratar.


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