Autor: Nuno Bastos
Este texto foi publicado no livro Outra Personagem e os outros, do autor.
Toc toc toc, alguém bate à porta. Senhor Outra! Senhor Outra! Alguém me chama do lado de lá da porta. Já acordou, senhor Outra? Bem... Agora já acordei. O que é?
Rapariga que Bate à Porta: O pequeno-almoço está pronto. Pode descer quando quiser.
Está bem. Já lá vou.
Todas as manhãs é a mesma coisa. Todas as manhãs bate à porta, chama-me, eu pergunto O que é? e ela responde O pequeno-almoço está pronto. Pode descer quando quiser. E todas as manhãs sempre assim será. Bate à porta, sempre com três pancadas toc toc toc, a do início, a do meio e a do fim, completando um ciclo, chama-me, eu pergunto O que é? ela responde O pequeno-almoço está pronto. Pode descer quando quiser. E já quase totalmente desperto olho para aquilo que sempre é a primeira coisa que vejo: o tecto branco. Já o pintei de outra cor (castanho) mas todas as manhãs aquilo que sempre via em primeiro era o tecto castanho. Tenho estado a pensar pintá-lo de outra cor, talvez verde ou azul. Outra solução seria olhar primeiro para a segunda coisa que vejo, se bem que a segunda coisa varia de dia para dia. Uma vez foi uma garrafa de vinho tinto que ficou tombada sobre a cómoda deixando verter para o chão o líquido interior. Outra vez deixei-me levar pelas voltas zonzas de uma mosca que voava e que comigo partilhou o quarto e tanto nela me concentrei que lhe tomei o corpo deixando de estar deitado e voava como insecto. Após ver a segunda coisa e enquanto me apronto para o pequeno-almoço, tenho o costumeiro hábito de fazer uma espécie de jogos mentais desde a associação de palavras (casa lembra janela, janela lembra vidro, vidro lembra reflexo, reflexo lembra relva, relva lembra jardim, jardim lembra árvore, árvore lembra folhas, folhas lembra maçã, maçã lembra vermelho... E assim por diante). Outro jogo que costumo fazer é dizer o alfabeto de vinte e seis letras e levantar uma mão (alternadamente a esquerda e a direita) de cada vez que digo uma letra. Por exemplo, A (levanto a mão direita) B (levanto a mão esquerda) C (a direita) D (a esquerda) E (direita) F (esquerda) G (direita) H (esquerda) I (direita) J (esquerda) K (direita) L (esquerda) M (direita) N (esquerda) O (direita) P (esquerda) Q (direita) R (esquerda) S (direita) T (esquerda) U (direita) V (esquerda) W (direita) X (esquerda) Y (direita) Z (esquerda). Costumo também dizer palavras ao acaso, mas tirando-lhes (também ao acaso) algumas letras. Costu bém di pala a caso, ma tindo-e (tam a so) gum tras. Depois isolo as letras que sobraram: mo tam zer vras o a, s ra-lh (bém o aca) alas le. Há até dias em que fico todo o tempo em que me apronto a tentar criar um destes jogos, algumas vezes sem o conseguir. Não sei se a Rapariga que Bate à Porta sabe disto, nem sei se gostaria que soubesse, pois iria, certamente originar a pergunta Então senhor Outra, que jogo fez hoje? enquanto me alimento do pequeno-almoço. Eu contratei-a apenas para os afazeres da casa (limpeza e cozinha) nem alojamento lhe dou, entra todos os dias de manhã e sai todos os dias à noite. O serviço de despertar toc toc toc é de sua criação. Concluiu que me deve acordar todas as manhãs à mesma hora. Já lhe disse que não há necessidade de o fazer, mas ela insiste em continuar. Pois bem, faça-o. Também não a contratei para conversar comigo mas ela conversa. Costumamos dialogar. Um fala e o outro ouve, um pergunta e o outro responde. Em vez de lhe dar alojamento, dou-lhe alimento. Alimenta-se sempre aqui em casa e senta-se sempre no mesmo lugar da mesa que é aquele que não me é destinado. É frequente alimentarmo-nos em simultâneo e ela também fala bastante, talvez tenha palavras em demasia ou as palavras não se segurem dentro do seu corpo. Mas há algo que me agrada nos pequenos-almoços que prepara. São uns pãezinhos que compra e que cuidadosamente coloca num prato para meu deleite enquanto bebo o leite, o café e os variados doces e compotas e às vezes alguma extravagância como uns bolinhos especiais de fabrico próprio que ela cuida bastante para que sejam tirados do forno com o tempo de cozedura exacto e medido ao segundo porque, diz a Rapariga, Só assim se tornam supremos no sabor e são ainda servidos mornos porque, diz a Rapariga, Só assim se tornam supremos no sabor. Acho que é uma receita qualquer que descobriu entre o livro de receitas da mãe que costuma cozinhar correntemente, uma senhora que não conheço pessoalmente mas que abundantes e excessivas vezes é assunto de conversa durante as refeições, A minha mãe isto ou A minha mãe aquilo e ainda aqueloutro dalém. E perde-se bastante quando fala de lugares, descreve-os minuciosamente, o que está onde, quantas cores e quais existem, quem estava e onde, quem faltava e porque faltava, quando aconteceu, as pedras e as árvores e poços das imediações, pássaros e cães e outras espécies e por aí fora e demais coisas que lá existam. E quando as conta, as suas curtas e rápidas viagens são assunto para muitas refeições, como os episódios de uma série televisiva, daqueles que continuam de uns para os outros. Muitas vezes a mesma cena atravessa várias refeições. Sim, sim, digo-lhe eu ou Pois, pois, porque se lhe fizer uma qualquer pergunta sobre a situação que descreve, é provável que essa pergunta dê origem a umas tantas outras situações e descrições e ao Isso que diz lembra-me outra coisa, que arrasta consigo assunto para mais umas tantas refeições. Remeto-me, por isso, ao Sim, sim e ao Pois, pois e há mesmo uma exigência na manutenção desses dois termos (o sim e o pois) pois se lhe digo Que interessante, a rapariga interrompe subitamente a história e pergunta-me Porque acha interessante, senhor Outra? situação que me obriga a responder largamente visto que ela não se contenta com um É interessante porque tal e tal e tal e porque isto ou aquilo e por aí fora, porque se lhe respondo, a conversa aumenta consideravelmente de tamanho e atravessa ainda mais refeições do que aquelas que seria de prever. Mantenho a preferência no pois que é o mais neutro dos termos aplicáveis numa situação destas em que o pois tem simplesmente o mesmo valor de Estou a ouvir-te. E quando termino a minha refeição e a rapariga deixa uma frase a meio, continua essa mesma frase na refeição seguinte começando-a exactamente onde parou, que é um aspecto que acontece bastante nas suas refeições, as coisas ficarem de uma para a outra, seja a frase que ficou inacabada, seja a carne ou o peixe ou as batatas que não foram terminadas por a quantidade de comida ingerida ter já sido suficiente, seja o sumo ou o vinho ou a água não totalmente despejado do copo, seja o bocado sobrado do pão, a peça de fruta não terminada, tudo é visto na mesa da refeição seguinte. Creio que foi um hábito que aprendeu com a mãe, o de nada desperdiçar. Chega a aproveitar as migalhas de pão, bolo e similares espalhadas sobre a mesa, junta-as num pequeno saco de pano bordado à mão para o efeito e leva-as para o parque objectivando reespalha-las aos pássaros que por lá andam e voam, que já a conhecem e reúnem-se e preparam sempre um grande festim, com o senão daquelas poucas migalhas, ainda que acumuladas de dois ou três dias, não sejam suficientes para alimentar toda a passarada, por isso há outras pessoas que espalham e atiram migalhas e pedaços de pão e bolo por forma a alimentar todos eles e são pessoas que já se conhecem e conhecem-se dali mesmo de um Olá vizinha, como vai? ou de um Olá colega, mas não digo que todos os dias se encontrem à mesma hora, preferem fazê-lo a diferentes horas, nem sei se cada uma delas terá uma hora certa para o fazer e duvido também que as aves prefiram comer a este ou àquele momento do dia, pois quando se trata de alimento todas elas surgem de todos os lados, umas de lá, outras de cá, umas dalém, outras d'aquém e mesmo quando constroem o ninho aterram para que recebam a comida. O Inquilino do Lado, meu vizinho desde sempre, resolveu tomar o seu pequeno-almoço comigo em minha casa. Vi-o com espanto a bater à minha porta a um momento do dia pouco próprio para o fazer, mas o certo é que bateu bateu e a Rapariga que Bate à Porta perguntou Quem é? e ele respondeu É o Inquilino do Lado. A porta foi aberta tornando-se ponto de penetração no meu lar, facilitando a presença do meu vizinho no seu interior. Sei como se processou esta cena porque estava já a caminho da mesa de refeições e ouvi tudo o que disseram, o que quer dizer que estava suficientemente próximo para conseguir ouvir, pois certo seria nada escutar se me encontrasse mais longe, mas o suficiente para nada escutar, enquanto a uma distância intermédia entre o longe e o perto talvez conseguisse ouvir metade da cena. Mas o certo é que o Inquilino do Lado entrou, viu-me e aproximou-se de mim livrando-se de um Bom dia, senhor Outra. Como está? Como não podia ignorá-lo, fingindo que o não vi, fui obrigado a retribuir aquele cumprimento matinal dizendo-lhe Bom dia, rapidamente seguido de Não o esperava ver aqui a estas horas (nem a nenhumas outras) mas já não me lembro que resposta se soltou de si porque isto aconteceu há algum tempo e não costumo decorar as respostas que os vizinhos me dão e a única coisa que me lembro desse arrastado pequeno-almoço foi uma conversa semi-dialogada sobre as mulheres que deitam migalhas aos pássaros e há até um ponto central no parque que é o local onde as migalhas são doadas e todas as mulheres sabem já que aquela é a mesa das aves e por isso aquele é não só o ponto de encontro entre elas, como também o ponto de união entre humanos e aves e claro que outros animais, como as formigas, também lá vão receber e muitas delas devem, acompanhadas da migalha que transportam nas mandíbulas, servir de alimento a um pássaro. Não creio que hoje haja os tais bolinhos especiais pois não lhes sinto o cheiro, mas talvez haja os pãezinhos que são saborosos. Não sei onde a Rapariga que Bate à Porta guarda o livro de receitas e raramente sei quando é dia de comer pãezinhos. Não sei também quais as compotas e doces que são colocados na superfície da mesa e sobre tudo isso apenas sei que tudo o que lá há é mantido no interior de um prato redondo. Esses pratos são fabricados à mão na olaria do tio da Rapariga que Bate à Porta que faz sempre pratos redondos porque, diz ele, Os quadrados não se vendem. Não que o sistema digestivo se importe, dê atenção, ou incomode de deglutir e digerir alimentos provindos de pratos quadrados e até creio que para os dentes tanto se lhe faz ser o prato redondo ou quadrado. Soube que esse mesmo tio tem um sobrinho que costuma acentuar a última sílaba de cada palavra. Ele diz Tarântu-lââ, lá está a tarântu-lââ. Também não conheço o tio ou o sobrinho, só sei que existem porque a Rapariga que Bate à Porta fala neles, O meu tio fez uns pratos redondos muito bonitos e têm florzinhas pequeninas azuis e brancas o prato é da cor do barro mas são muito bonitos o senhor Outra haveria de gostar deles e de comer deles vou trazer-lhe um um dia que me lembre e deram algum trabalho a fazer porque foi uma senhora que fez ao meu tio uma encomenda de pratos e os pratos tinham de ter uma medida especial tinham de ter não sei quantos centímetros de diâmetro porque se fossem maiores ou mais pequenos não ficariam bem na mesa porque eram vários pratos que a mesa iria ter e se fossem maiores poderiam não caber todos e se fossem mais pequenos não ficariam bem porque os talheres são grandes e ficariam maiores do que os pratos na mesa e por isso o meu tio teve um grande trabalho para que os pratos depois de cozidos ficassem com o tamanho certo e as florezinhas também foram um pedido da senhora que lhe disse Eu quero que os pratos tenham florezinhas azuis e brancas porque a minha toalha é azul e branca os talheres brancos e os copos azuis e assim fica tudo igual e lembro-me que estava a chover no dia em que os pratos ficaram prontos. Do sobrinho a Rapariga que Bate à Porta não fala muito, muito pouco fala até. Parece-me até que estas três pessoas são os únicos familiares que a Rapariga que Bate à Porta me fala. Se seguirmos uma ordem de importância temos, em primeiro lugar a mãe, pela maneira como a Rapariga abocanha vorazmente as palavras sempre que dela me informa, em segundo lugar o tio que se torna assunto de conversa sempre que necessário e, por fim, o sobrinho que é quase uma figura inexistente. Naquela vez em que os pássaros faltavam na sua maior parte, todas as mulheres perguntavam Onde estão os pássaros? Porque não vêm os pássaros? mas, por fim, lá apareceram, deviam estar. Espero que hoje não me fale do tio ou da mãe ou do sobrinho, não me apetece saber deles. Prefiro saber o que ela fez ontem depois de sair daqui ou hoje antes de chegar, ainda que, quando abordados, esses assuntos se tornem desinteressantes e eu não quero saber o que fez ontem ou hoje. Há qualquer coisa planeada para hoje mas não me lembro o quê, talvez a Rapariga saiba, ela costuma saber estas coisas, onde vou, o que preciso de fazer. Até me diz sem eu perguntar Hoje, senhor Outra, tem uma reunião com o senhor tal em tal sítio e a tal hora. Não se esqueça de levar isto, isto e aquilo. E há sempre esta coisa que se esquece, veja lá não se esqueça desta vez. Ela diz-me quando eu descer para o pequeno-almoço.
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