O Fauvismo

No final deste texto conheça o trabalho de artes plásticas produzido pelos membros do Colectivo Arcaico.


A segunda metade do século XIX e o início do século XX foi uma altura em que as artes plásticas revelaram um grande fulgor. Foi nesta época que surgiram autores como Picasso, van Gogh, Duchamp, Matisse, Cézanne, Klimt, Munch, entre muitos outros. Nascidos também nesta época, são os movimentos que conhecemos pelo nome de Impressionismo, Dadaísmo, Cubismo, Expressionismo, Surrealismo, Fauvismo e por aí fora. É, de facto, uma altura impressionante em termos de desenvolvimentos artísticos.

Catálogo do Salão de Outono de 1905

Estamos em Paris, em 1905. Decorre o Salão de Outono. Presentes nessa exposição estão, entre outros, Matisse, de Vlaminck e Derain. Percorrendo o Salão, há um homem, um crítico de arte de espírito conservador chamado Louis Vauxcelles. É dele a frase “C’est Donatello dans la cage aux fauves” (“É um Donatello na jaula das feras”) ao ver uma escultura esculpida num estilo mais conservador e que se encontrava na mesma sala onde se localizavam as pinturas daqueles que viriam a ser chamados de fauves (francês para “feras”). Essas pinturas de cores intensas e irreais eram, para Vauxcelles, obra de feras selvagens, quando contrapostas com a escultura de cariz mais conservador. Uma das pinturas era esta, de Matisse:

Henri Matisse, Mulher com Chapéu
Óleo sobre tela, 79,4 x 59,7 cm, 1905

Quem era esta gente que escandalizou não só esse crítico, como também outros visitantes da exposição? Quem eram esses artistas?

Nascidos durante a segunda metade do século XIX, sendo Matisse o mais velho, eles cresceram artisticamente, absorvendo os novos e recentes pontos de vista em relação às artes plásticas. Eles cresceram a ver Cézanne, Van Gogh, Gauguin, Monet, Delacroix, Degas, Signac e Seurat. Eles receberam novos conhecimentos lançados por estes autores. Foi destes que brotou uma parte das sementes que fizeram nascer o Fauvismo. Uma dessas sementes tinha impressa a palavra “cor”. Com efeito, a cor é um instrumento que foi estudado e experimentado por artistas que precederam o Fauvismo. Veja-se, por exemplo, Van Gogh.

Vincent van Gogh, O Café de Noite
Óleo sobre tela, 72,4 x 92,1 cm, 1888

A cor é um dos elementos mais importantes na obra de Vincent Van Gogh. Ele tomou as cores das coisas, a cor que ele via e exagerou-a, tornou-a forte, intensificou-a. Ele trabalhou a cor. Acerca da cor, van Gogh disse: “A cor por si própria expressa algo”.

Em Van Gogh, a cor deixa de ser real e autonomiza-se. Passa a ser a expressão do artista em vez de apenas colorir um determinado objecto. A cor deixa, assim, de fazer parte do objecto pintado, passando a ser um elemento livre, autónomo, da pintura. E isto também significa que é o artista que escolhe as cores que cada objecto tomará na sua pintura.

Voltemos, mais uma vez, a Matisse.

Henri Matisse, Sala Vermelha (Harmonia em Vermelho)
Óleo sobre tela, 180,5 x 221 cm, 1908

Uma das primeiras coisas que nos salta à vista quando observamos esta Harmonia em Vermelho, são os planos lisos de cor que preenchem quase por completo a superfície da pintura. Logo a seguir, reparamos que o plano vertical (a parede da sala) e o plano horizontal (a mesa) são pintados na mesma cor e, mesmo assim, conseguimos fazer a distinção entre ambos os planos. Nesta pintura, o espaço criado por Matisse é tridimensional. A mulher consegue mover-se livremente pela sala. Temos igualmente a percepção desta tridimensionalidade ao olharmos através da janela. Percebemos claramente que o espaço se abre para o exterior da sala. O jardim, apesar de apenas estar pintado em planos de cor, dá-nos claramente essa ilusão de espaço tridimensional. Esta pintura foi trabalhada em torno da cor como se, do interior da cor, se abrisse este cenário. A cor é aqui tomada como um instrumento para descrever o espaço.

E o que dizer, então, acerca dos fauves como grupo?

O Fauvismo nunca evoluiu para aquilo que se pode chamar de grupo, tal como o Surrealismo, por exemplo. Em vez disso, o movimento cresceu a partir do trabalho individual de vários artistas que se conheciam e que partilhavam um interesse comum. Não havia sequer qualquer manifesto escrito que fosse por eles seguido. As Notas de um Pintor da autoria de Matisse, de 1908, fazem ecoar a parte teórica deste movimento.

O que unia estes artistas, o seu interesse comum, era o uso da cor como um meio de expressão. André Derain disse: “Eu usei a cor como um meio de expressar as minhas emoções e não como uma transcrição da natureza”.

André Derain conheceu Matisse em 1898 e, em 1900, conheceu e partilhou o atelier com Maurice de Vlaminck. Em 1905, Matisse e Derain trabalharam juntos em Collioure, no sul de França, amadurecendo o trabalho que tinham vindo a desenvolver desde há uns poucos de anos. Nesse mesmo ano, no Salão de Outono, aqueles que viriam a ser chamados de fauves deram a conhecer o seu trabalho.

André Derain, O Pego de Londres
Óleo sobre tela, 65,7 x 99,1 cm, 1906

Esta pintura de Derain mostra cores fortes e contrastantes, aplicadas em planos lisos. Os contrastes obtidos não só através da justaposição de escuros e claros, como também de complementares (laranjas e azuis, verdes e vermelhos) dão a esta pintura um aspecto preenchido pela cor.

Vemos agora uma peça de Vlaminck, uma pintura fervilhante de cor e executada com pinceladas curtas, numa técnica que lembra a de Van Gogh.

Maurice de Vlaminck, Houses at Chatou
Óleo sobre tela, 81,3 x 101,6 cm, c. 1905

Mais uma vez, vemos aqui uma autonomia da cor em relação aos objectos representados. Num certo sentido, podemos dizer que não são as cores que habitam os objectos, mas sim os objectos que habitam as cores.

Uma outra característica dos fauves é a simplificação das formas. Veja-se, por exemplo, os homens que surgem na pintura de Derain. As figuras são como que “esboçadas” por um contorno e pela cor que as preenchem. O contorno é, aqui, aquela linha que encerra a forma humana (ou, melhor dizendo, que encerra aquela configuração que reconhecemos como sendo a humana). Alguns dos homens não têm sequer qualquer linha de contorno, sendo apenas manchas de cor com forma humana (como os dois do barco grande, à direita do mastro).

Repare-se também na área mais colorida do barco grande, ao centro da pintura. Observamos aí uma amálgama de cores e até conseguimos perceber a existência de botes salva-vidas e de bóias, mas o que aqui importa é como André Derain viu e passou para a tela esse bocado do barco: os botes e as bóias foram desconstruídos em manchas de cor. Ou seja, os botes deixaram de ser botes, deixaram de ter o valor de botes, para passarem a ser manchas de cor. O mesmo se passa com as bóias e com outras partes do cenário, sejam os homens ou os barcos que navegam no rio.

Os fauves reduziram a pintura a um dos seus componentes básicos: a cor. A cor como um meio de expressão, a cor como emoção. À parte a simplificação das formas, estes artistas reduziram a pintura a um trabalho que vive, sobretudo, da cor, como se a cor fosse o tema central da pintura. Apesar disso, não se pode dizer que o Fauvismo tenha tido um estilo definido, algo que dissesse que as pinturas tenham de ter determinadas características ou que tenham de ser executadas segundo uma determinada norma. Pelo contrário, cada um dos artistas que passou por este movimento centralizado em França, tinha a sua própria maneira de abordar a questão e deu a sua parte não só ao Fauvismo como a outros movimentos posteriores.


Origem das imagens:
Catálogo do Salão de 1905: Société du Salon D’Automne
Henri Matisse, Mulher com chapéu: San Francisco Museum of Modern Art
Vincent Van Gogh, O Café de Noite: Yale University Art Gallery
Henri Matisse, Sala vermelha (Harmonia em Vermelho): The State Hermitage Museum
André Derain, O Pego de Londres: Tate
Maurice de Vlaminck, Houses at Chatou: The Art Institute of Chicago

Autor do texto: Nuno Bastos


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